13 setembro 2008

Dignidade da mulher: Aborto Seletivo

Anelise Tessaro é Advogada, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Desde a graduação orienta e ingressa com pedidos de alvará judicial para interromper a gestação por anomalia fetal incompatível com a vida. Participou, na condição de convidada, de programas de debates, entrevistas e audiência pública. Além desta obra, possui artigos publicados em revistas jurídicas especializadas. Autora da obra "Aborto Seletivo".
1- O que a motivou ao estudo de tema tão intricado?
O interesse em estudar este tema surgiu da constatação de que as gestações afetadas por anomalias que incompatibilizavam a sobrevivência extra-uterina ocorriam com mais freqüência do que imaginava. Paralelo a esse fato, conversando com profissionais da área, descobri que muitas das mulheres que levavam a termo uma gestação sem perspectiva de êxito eram as clientes do sistema público de saúde. Embora a incidência deste tipo de anomalia não esteja relacionada à classe social, em muitos casos, a gestante que possui uma melhor condição econômica e quer interromper a gestação não se sujeitará ao tempo de espera do processo, que além de demorado poderá ser inócuo, quando pode custear um “aborto” em estabelecimento que, apesar de clandestino, é conduzido por profissional habilitado e possui boa condição de higiene. É uma realidade que não se pode negar. Outra possibilidade seria que, na área privada, não raras vezes, este problema é resolvido entre o médico e a paciente, que, por compaixão e razões humanitárias, efetua o abortamento como se tratasse de feto morto. Em síntese, essas foram as principais razões que me levaram a aprofundar o estudo da matéria.
2- Diante dos dilemas éticos e jurídicos, como vem sendo tratado no Brasil a hipótese de interrupção da gestação de feto portador de anomalia incompatível com a vida?
Infelizmente, a questão ainda é tratada como se fosse crime de aborto. Entretanto, sensíveis à realidade daqueles que têm o infortúnio de receber o diagnóstico de uma anomalia fetal incompatível com a vida, muitos juízes têm deferido autorizações para a interrupção destas gestações baseados nos dogmas constitucionais de que ninguém deverá ser submetido a tratamento desumano e em atenção ao princípio da dignidade humana. Também, outro recurso utilizado é a analogia in bonan partem, uma vez que o legislador penal permitiu o aborto independentemente das condições físicas do feto, e o prosseguimento de uma gravidez deste tipo acarreta sérios danos a saúde mental da gestante, comparando-se com o permissivo legal do estado de necessidade. Estimativas sugerem mais de três mil autorizações deferidas nos mais diversos estados brasileiros. Entretanto, embora amparado por reiteradas decisões, sabe-se de casos cujas autorizações são indeferidas pela singela justificativa de não haver previsão expressa na legislação penal, negando vigência, assim, aos postulados de igualdade, humanidade e dignidade, acesso à justiça e direito à saúde, consagrados na Carta Constitucional de 1988.
3- O entendimento dos que se manifestam contrários à interrupção da gravidez de feto inviável é de que este procedimento consistiria em um aborto eugênico. A senhora compartilha deste entendimento?
De forma alguma. O aborto eugênico pressupõe uma interrupção de gestação com o fim de atingir um padrão de raça estabelecido como desejável, possuindo, assim, necessariamente uma implicação em nível de população mundial. Por sua vez, o aborto seletivo (ou seja, a interrupção da gravidez de feto inviável) somente antecipa um fato certo, que é o óbito do feto, uma vez que estão presentes anormalidades físicas que inviabilizam sua vida extra-uterina. Trata-se, assim, de uma antecipação terapêutica do parto que, ao contrário do aborto eugênico - onde há uma expectativa de vida extra-uterina - não possui qualquer implicação em nível de população mundial, no sentido de uma adequação a certos padrões estabelecidos como desejáveis, pois não há nenhuma expectativa de vida para um ser que padece de tais anomalias.
4- É notória a insatisfação produzida pelo choque entre a CF/88 que prevê a igualdade, humanidade, dignidade, acesso à justiça e direito à saúde, e a lei penal oriunda de 1940, período em que sequer existia o diagnóstico pré-natal. Desta forma, diante de um problema concreto que exija uma decisão coerente, como o anacronismo da lei penal pode ser superado?
Este anacronismo pode ser superado pela imediata aplicação dos princípios constitucionais ao caso concreto. Ressalto que enquanto perdurar esta omissão legislativa, qual seja, a atualização do Código Penal, incluindo-se o permissivo da anomalia incompatível com a vida dentre o rol das excludentes de ilicitude do delito de aborto, faz-se necessário a conscientização da sociedade civil em geral, alertando estas gestantes sobre a possibilidade de ingressar com os referidas solicitações de alvarás judiciais, cabendo aos juízes, promotores e advogados envolvidos no processo, operacionalizarem a efetivação daqueles direitos assegurados constitucionalmente, garantindo-se uma posição mais equânime e abrangente em relação ao abortamento seletivo.
5- A senhora acredita que o choque entre as leis, o rigorismo prejudicial dos julgadores e as explícitas dificuldades para se acessar a justiça, depõem contra a sociedade de um modo geral, podendo ser interpretadas inclusive como fatores preponderantes para a busca pelo aborto clandestino por parte da gestante?
Sim, com toda certeza. Pesquisas demonstram que as maiores taxas de mortes em decorrência de abortamentos clandestinos ocorrem nos países onde as leis penais sobre o aborto são mais restritivas, à exemplo do Brasil. Ou seja, criminalização do aborto não impede que sejam realizados aproximadamente um milhão de abortos/ano e que suas complicações sejam responsáveis pela terceira causa de morte materna no país. Logo, constitui-se numa política criminal sem eficácia.
6- Diante dos últimos acontecimentos nessa seara, é possível prever mudanças sinceras e benéficas na legislação, objetivando-se menor sofrimento para as partes envolvidas e conseqüentemente menor transtorno para a sociedade?
O pronunciamento do Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da Lei da Biossegurança sinaliza, no meu sentir, um julgamento favorável na Argüição de Descumprimento Fundamental nº 54, que trata da antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos. Assim, ao menos em relação às gestações que padecem desta anomalia, vislumbro mudanças e implementação de políticas públicas para tanto. Com relação as demais anomalias incompatíveis com a vida, infelizmente, só com a aprovação da nova redação do art. 128, do Código Penal, o que depende de vontade política.

http://www.jurua.com.br/

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